O que fazer com achados materialmente irrelevantes?

A pergunta de hoje foi formulada por Victor Hugo Aurélio de Souza, do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR):

Bom dia, Nelson. Tudo bem?

Tomo a liberdade em esclarecer uma dúvida contigo.

Estou como gerente de planejamento na CAGE e temos enfrentado a seguinte situação: ao realizar os procedimentos de fiscalização de determinado objeto, por vezes nos deparamos com situações irregulares que não estão abarcadas pelos possíveis achados (previamente elencados na matriz de planejamento). 

O que se faz hoje: cria-se um novo achado e reporta-se à entidade fiscalizada por meio de APA (junto com os demais achados). 

Minha dúvida é: o que você entende que deveria ser feito (sob a luz da NBASP e da boas práticas)? 

Meu entendimento inicial seria de que ao se identificar um achado que não foi previamente levantado e não desdobrou de uma questão de fiscalização teríamos 3 hipóteses.1. Se perguntar se o achado guarda relação com o objeto e com o objetivo da fiscalização (está dentro do escopo ou não). 1.a Se guardar relação: refazer a matriz de planejamento e apontar na fiscalização (sempre vinculada a uma questão de fiscalização); 1.b.1 Se não guardar relação mas for algo relevante: dar ciência ao TC por outro instrumento que não por meio daquela fiscalização que está em andamento; 1.b.2 Se não guardar relação e for algo irrelevante: não informar.​

Isso de certa forma me parecia lógico, no entanto fiquei confuso ao ler o seguinte trecho da NBASP 4000: 

Requisito:

99. Casos de não conformidade relevantes devem ser comunicados ao nível de gerência adequado e (se aplicável) aos responsáveis pela governança. Outros assuntos significativos decorrentes da auditoria que sejam diretamente relevantes para a entidade também devem ser comunicados. 

Explicação:

100. Achados que não sejam considerados relevantes ou que não justifiquem sua inclusão no relatório do auditor também podem ser comunicados à administração durante a auditoria. A comunicação de tais achados pode ajudar a entidade auditada a sanar casos de não conformidade e a evitar ocorrências semelhantes no futuro.

Obrigado,

Victor.

A dúvida do nosso colega foi respondida por Nelson Nei Granato Neto, do Tribunal de Contas do Estado do Paraná e assessor da Presidência do IRB:

Bom dia, Victor! Tudo certo e você?

Você trouxe um detalhe que não tinha percebido na NBASP 4000 e que aparece recorrentemente na discussão dos nossos trabalhos.

As normas trazem os princípios e requisitos que devem ser observados nos nossos trabalhos, no entanto, cabe a nós encontrar o melhor caminho para observá-los em cada situação concreta. Assim, vamos construindo boas práticas para os nossos trabalhos, inclusive os de acompanhamento.

Pegando o fluxo que você apresentou:

1. Se perguntar se o achado guarda relação com o objeto e com o objetivo da fiscalização (está dentro do escopo ou não). 1.a Se guardar relação: refazer a matriz de planejamento e apontar na fiscalização (sempre vinculada a uma questão de fiscalização); 1.b.1 Se não guardar relação mas for algo relevante: dar ciência ao TC por outro instrumento que não por meio daquela fiscalização que está em andamento; 1.b.2 Se não guardar relação e for algo irrelevante: não informar.

Este fluxo do acompanhamento  é totalmente coerente com os princípios e requisitos das normas relativos à materialidade e ao processo de trabalho (planejamento, execução e relatório): parte-se de um escopo, que foi construído com recortes de objetos e critérios aplicáveis materialmente relevantes. 

Na situação 1a. faz-se um ajuste do planejamento inicial, incluindo critérios relevantes que inicialmente não foram levados em consideração 

Na situação 1.b. anota-se a situação relevante que não está no escopo para o TC eventualmente atuar neste objeto com uma fiscalização (um acompanhamento) específica(o).

Na situação 2. Descarta-se a situação por estar fora do escopo e não ser materialmente relevante.

Os enunciados 99 e 100 da NBASP 4000 são relativos a outro princípio: o da comunicação com a entidade auditada (NBASP 100.43 e NBASP 400.49).

Nessa comunicação, o requisito 99 determina que fatos materialmente relevantes na condução dos trabalhos devem ser informados à entidade auditada:

99. Casos de não conformidade relevantes devem ser comunicados ao nível de gerência adequado e (se aplicável) aos responsáveis pela governança. Outros assuntos significativos decorrentes da auditoria que sejam diretamente relevantes para entidade também devem ser comunicados.


Essa comunicação inclui a informação à entidade auditada dos achados preliminares (APA), que por definição devem conter situações materialmente relevantes, uma vez que são oriundos do escopo do trabalho (seja o original ou o da situação 1.a). Ou seja, novamente, o fluxo de trabalho do acompanhamento também está observando este requisito que é obrigatório.

Já o enunciado 100 quase que contradiz todo o resto. No entanto, ele não é um requisito obrigatório, mas apenas uma explicação. As explicações da NBASP 3000 e 4000 trazem formas possíveis de observar os princípios e requisitos, servem como uma espécie de orientação (ou, neste caso, quase uma desorientação).

Deste modo, o enunciado 100 traz uma possibilidade para as situações materialmente irrelevantes que eventualmente encontramos, que justamente por isso não irão para um relatório, nem serão objetos de fiscalizações futuras. O que podemos fazer com elas?

100. Achados que não sejam considerados relevantes ou que não justifiquem sua inclusão no relatório do auditor também podem ser comunicados à administração durante a auditoria. A comunicação de tais achados pode ajudar a entidade auditada a sanar casos de não conformidade e a evitar ocorrências semelhantes no futuro.

Ou seja, a resposta da norma é: Podemos (mas não somos obrigados) a informar essas situações às entidades fiscalizadas.

Pessoalmente, por mais que a norma dê essa possibilidade, acredito que o melhor caminho é não informar essas situações às entidades fiscalizadas. Os benefícios para a entidade auditada tendem a ser pequenos (uma vez que essas situações são irrelevantes por definição) e isso traria alguns transtornos para a organização dos trabalhos do acompanhamento:

1) Como comunicar essas situações? A princípio, não poderia ser por APA, uma vez que isso confundiria a entidade fiscalizada (situações relevantes misturadas com irrelevantes). Talvez uma lista de inconformidades não-relevantes identificadas? O TC nem tem esse encaminhamento estabelecido formalmente. Ficaria meio estranho.

2) Quem controlaria a qualidade dessas listas de inconformidades não-relevantes? Provavelmente o gerente 😉 (que já tem mais o que fazer). Teria que haver uma supervisão desse trabalho para criar parâmetros para apontar essas inconformidades não-relevantes (o pior cenário seria uma dada situação X ser informada como não-relevante para um município e se tornar um APA para outro).

3) Além disso, muitas vezes é difícil fazer a equipe cumprir o escopo de trabalho estabelecido e deixar essa brecha aberta poderia dificultar ainda mais esse trabalho.

Assim, acredito que o melhor a se fazer é discutir de tempos em tempos com a equipe sobre essas situações que eventualmente surgem fora do escopo para analisar de um modo mais macro se elas são materialmente relevantes ou não (e nem perder tempo com o que é irrelevante).

Espero ter ajudado! 

Abraço,

Nelson

Conclusão:

Ou seja, na condução de uma dada fiscalização temos o dever de informar todas as situações materialmente relevantes, seja no relatório da ação de controle em questão naqueles pontos ligados ao escopo, seja ao Tribunal de Contas, para as situações fora do escopo (que, eventualmente, podem desencadear ações de controle específicas). A NBASP 4000 traz a possibilidade de informar à entidade fiscalizadas sobre achados materialmente irrelevantes, mas isso traria uma série de transtornos à organização dos trabalhos do Tribunal de Contas. Portanto, é mais produtivo focar os esforços em temas relevantes (e deixar o que não é relevante de lado).